COMANDO DE
ENSINO POLICIAL MILITAR
CEPMG -
VASCO DOS REIS
Divisão de
Ensino / Coordenação Pedagógica
TERCEIRO BIMESTRE
AULA 25 DE SOCIOLOGIA DOS SEGUNDOS ANOS:
KARL MARX E A ALIENAÇÃO (Concluir)
(Prof. José Antônio Brazão.)
EU, ETIQUETA (Carlos
Drummond de Andrade)
Em minha calça está grudado
um nome
que não é meu de batismo ou
de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de
bebida
que jamais pus na boca, nesta
vida.
Em minha camiseta, a marca de
cigarro
que não fumo, até hoje não
fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus
pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de longa
idade.
Meu lenço, meu relógio, meu
chaveiro,
minha gravata e cinto e
escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e
sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça ao bico dos
sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordens de uso, abuso,
reincidência,
costume, hábito, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio
itinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda
que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil,
açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos do
mercado.
Com que inocência demito-me
de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão
mim mesmo,
ser pensante, sentinte e
solidário
com outros seres diversos e
conscientes
de sua humana, invencível
condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar ora bizarro,
em língua nacional ou em
qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comparo, tiro
glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio
contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias
pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta
etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de
uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum a
compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de
escolher,
minhas idiossincrasias tão
pessoais,
tão minhas que no rosto se
espelhavam
e cada gesto, cada olhar
cada vinco da roupa
sou gravado de forma
universal,
saio da estamparia, não de
casa,
da vitrine me tiram,
recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo de
outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão
orgulhoso
de ser não eu, mas artigo
industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de
homem.
Meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade ANDRADE,
C. D. Obra poética, Volumes 4-6. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989.
O texto acima encontra-se em:
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS,
Maria Helena Pires. Propaganda e Ideologia. IN: _________________________. FILOSOFANDO:
Introdução à Filosofia. São Paulo, Moderna, 1994. P. 50. Também disponível na internet, podendo ser
encontrado em: < https://www.faberj.edu.br/cfb-2015/downloads/biblioteca/filosofia/Filosofando.pdf
> Acesso em 19/08/2023.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Eu, etiqueta. Apud: PENSADOR UOL.
Disponível em: https://www.pensador.com/frase/MjAyODM0/
Acesso em 04 de junho de 2017.
O texto de Carlos Drummond de Andrade
presta-se a um trabalho interdisciplinar muito bom entre Filosofia e Língua
Portuguesa (dentro desta, a literatura brasileira contemporânea, no campo da
poética). Nele encontram-se temáticas como: (1)Moda – Filosofia: Theodor Adorno
e Max Horkheimer, com a Indústria Cultural. (2)Alienação – Filosofia: Ludwig
Feuerbach e Karl Marx. (3)Identidade – o EU em diversos filósofos.
(4)Ser sentinte, pensante e outros – Filosofia: o ser, ser humano, ser pensante
(ex.: René Descartes). (5)Existência e vida – Filosofia: o Existencialismo.
(6)Liberdade – Na Filosofia: vários filósofos e filósofas (ex.: Hannah Arendt).
(7)(Várias outras temáticas e filósofos[as].) Escolher textos curtos bons das
temáticas desses(as) filósofos(as) e pôr em discussão com o texto literário do
escritor.
POEMA EU,
ETIQUETA, DE CARLOS D. DE ANDRADE [comentário]: (Prof. José Antônio.)
O poema Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade, trata da transformação
das pessoas em objetos, marcas, anúncios, de sua perda de identidade,
transformando-se em coisas, abandonando o ser, sua essência.
O ser aparece no poema na forma de
verbo conjugado no presente do indicativo, apontando para a realidade da
coisificação (reificação) pessoal, e como substantivo (o nome ser),
referindo-se ao gênero humano (ser humano, ser pessoa).
De tanto fazer uso de vestes e
acessórios para o corpo contendo marcas de produtos do mercado e, por vontade
própria (“eu é que mimosamente pago”), propagandeiam aquelas mercadorias, as
pessoas acabam perdendo aquilo que as identifica(m). Em vez de mostrar o que
são, mostram coisas, nomes de produtos, de mercadorias), acabando por
identificar-se com elas, ainda que não as comprem ou usem. A moda impõe-se, a
personalidade obedece, a moda entra, a personalidade sai, esvaindo-se,
perdendo-se.
O poema expõe a antítese (oposição)
entre o ser (ser humano, pessoa) e o não-ser, isto é, a perda da identidade
humana, que acaba por tornar-se coisa, objeto de anúncio mercadológico. O
mercado, com suas marcas (etiquetas), impõe-se sobre a pessoa, levando-a a
identificar-se com as mercadorias, alienando-se de seu ser.
No século 19 (XIX), Karl Marx estudou
as ideias de Ludwig Feuerbach (filósofo alemão também do mesmo século). Este,
ao estudar as religiões, concluiu que os homens criam os deuses, prestando-lhes
culto e criando doutrinas ao redor de suas crenças. Com o passar do tempo, os
criadores (pessoas) se tornaram criaturas daqueles que, na verdade, haviam
criado, isto é, tornaram-se criaturas dos deuses e deusas. Desta forma, os
seres humanos alienaram-se.
Aliu(s), no latim, é outro. Alienação
é a ação de tornar-se outro (aliu[s]), deixando de ser o que se é e perdendo,
portanto, sua identidade humana, de criador, passando a identificar-se como
criaturas dos deuses. Por meio dessa alienação surgiram, pois, os deuses e as
deusas, cabendo às criaturas alienadas (pessoas) submeter-se àqueles e aos seus
representantes religiosos, os sacerdotes.
Marx aplicou as ideias de Feuerbach
na análise da mercadoria. Toda mercadoria é algo produzido por trabalhadores e
trabalhadores, principalmente em fábricas (indústrias), muitas vezes com o
auxílio de máquinas – de fato, na época de Marx, a Revolução Industrial já
havia avançado muito e, com ela, também a exploração de tais produtores(as).
Mercadoria é um produto que vai para o mercado, a fim de ser vendido,
conferindo lucros aos donos da produção (comerciantes, industriais e outros),
ou seja, aos capitalistas.
A exploração de cada trabalhador e
trabalhadora, de todos(as) os(as) trabalhadores(as) ocorria (e ocorre) de
diferentes modos, com destaque para a mais valia – um valor a mais produzido
que é apropriado pelos capitalistas –, seja através do aumento das horas
trabalhadas (horas extras) e não pagas, seja pelo incremento da produção,
tornando-a mais rápida e em maior escala, com o auxílio de máquinas e da
colocação dos(as) trabalhadores(as) em linha. Também salários baixos – os
salários eram tão baixos, no século 19 (XIX), que mulheres e crianças tinham
que postas para trabalhar a fim de dar condições de sobrevivência às famílias,
e recebiam salários menores que os dos homens. Não havia previdência social. As
condições de trabalho nas fábricas eram péssimas, até mesmo insalubres. Havia
crianças e adultos que perdiam mãos e até braços, estraçalhados pelas máquinas
em momentos de descuido. Pior: perdiam o emprego quando isso ocorria, sem
qualquer direito. Muitas vezes, todos(as) trabalhavam mais de 12 horas por dia!
Férias inexistiam. Relógios eram manipulados para que cada trabalhador(a), com
sua mulher e seus filhos trabalhassem a mais.
E as mercadorias? Postas no mercado,
passaram a ser vistas como objetos de necessidade e, muitas vezes, até de
desejos. O trabalhador e a trabalhadora (operários, operárias e outros)
deixaram de ver as mercadorias como produtos do trabalho explorado. As mercadorias,
com o tempo, foram se tornando fetiches. A alienação estava em curso: a
mercadoria fetichizada perdeu seu caráter de produto e se tornou um bem em si,
inclusive como objeto de desejo, de culto, como os deuses de Feuerbach. Cada
trabalhador(a) se tornou um outro ser diante da mercadoria exposta na vitrine e
no mercado, não enxergando nela um produto, fruto da exploração que enriquece
os capitalistas. Só para dar alguns exemplos atuais: as mercadorias aparecem na
televisão, em outdoors, vitrines de shoppings e mercados, lojas, etc.,
desejáveis e até mesmo idolatráveis, fetiches! Aquele carro do ano, aquela
roupa da moda, aquele tênis, aquela grife, etc., como bem apresenta também o
poema de Carlos Drummond de Andrade.
Fetiche significa, originalmente,
feitiço, encantamento. A mercadoria, que se tornou um objeto encantado pelo
mercado, objeto de profundo desejo e de adoração. E o que é uma crise
econômica? Uma crise dessa adoração, desse encantamento, momento em que, por
causa da falta de compra e redução nas vendas (muitas vezes, pela falta de
dinheiro pela maioria das pessoa), o mercado entra em colapso. Então, os
capitalistas, com o mercado, fazem? Em sua adoração à riqueza e à ambição
desenfreadas, sacrifica a vida de milhões e milhões de pessoas, desempregadas
e, muitas, levadas de volta à miséria.
No século 19 (XIX), crises de
superprodução eram comuns. Produzia-se além do poder de consumo das pessoas,
então sobrava muito, perdas podiam ser grandes. E a solução? Reduzir a
produção, diminuindo a quantidade de trabalhadores(as), levados(as) ao desemprego
e sujeitos, mais ainda, a salários curtíssimos – algo similar ao que ocorre no
mundo atual –, no intuito de manter as riquezas do capital. O capital
transforma as pessoas em coisas, palavra que aparece tanto no poema de Drummond
(século 20 [XX]) quanto, antes dele, em Karl Marx (século 19 [XIX]).
O ser humano alienado – tornado outro
–, ou seja, alguém sem identidade, torna-se coisa. Marx usa o termo reificação,
ação de tornar-se res (palavra do
latim que significa coisa) – coisificação. Daí, como bem aparece no poema, o Eu
tornar-se “coisa, coisamente”.
A alienação – perda de identidade de
produtor(a) de mercadorias, perda de identidade das pessoas enquanto pessoas –
reforça a exploração, escondendo a realidade dessa exploração. Uma crise
econômica, como a atual, no Brasil e no mundo, por exemplo, aparece
ideologicamente como crise da falta de venda de mercadorias, como fruto do
desaquecimento do mercado, não como fruto da reificação, da coisificação de
milhões e milhões de trabalhadores(as) e de suas famílias. Ao deus mercado,
junto com a ambição desenfreada em busca do aumento das riquezas de empresas e
bancos, sacrificam-se vidas, famílias inteiras. Criam-se aparências, como a de
que a culpa é também da Previdência ou das leis trabalhistas ditas antigas ou
ultrapassadas. Esconde-se que, por trás, existe, no fundo, a exploração e
milhões de pessoas cujo trabalho sustenta o modo de produção capitalista. Mexer
em direitos de trabalhadores(as) para aumentar as riquezas e o poder econômico
e político de grandes empresários, empresas multinacionais, investidores
nacionais e estrangeiros, latifundiários e outros, a quem as reformas
diretamente vão beneficiar e que não sofrerão com as perdas sofridas por
aqueles(as).
Além dos seres humanos (operários e
outros trabalhadores), o próprio mundo natural continua a ser sacrificado pelo
capital. Uma das razões dos impasses em conferências climáticas, das saídas de
grandes poluidores mundiais de tratados internacionais, é a produção de
mercadorias e bens, sejam estes de compra e venda diretas, em mercados comuns,
sejam eles bens financeiros (ações e outros produtos presentes em bolsas de
valores). Uma produção fundada na exploração, de muitas formas, como as já
apresentadas: mais valia, salários baixíssimos, horas extras não pagas, perda
de direitos trabalhistas (na previdência, nas leis, etc.), etc. A própria
corrupção, nas negociações e até na política aliada aos interesses do capital,
é um meio de exploração – pessoas e grupos ricos se enriquecem às custas também
do roubo do que é coletivo. Dentre os resultados, igualmente se encontram
milhares de mortes em hospitais e serviços públicos de saúde, pessoas morrendo
de fome em continentes inteiros, como é o caso da África, das Américas e
outros, e tantos desmandos.
As mercadorias fetichizadas, não
vistas mais como produtos frutos do trabalho explorado mas como bens de
consumo, tornam-se objetos de desejo e de adoração, reforçados pela propaganda
constante, seja na televisão, seja no rádio, em outdoors e por outros meios de
comunicação, seja, como mostra bem o poema de Drummond, através da própria
roupa, ou melhor, do próprio corpo, que estampa marcas e ideias de consumo,
realizando gratuita e escravizadamente (“escravo da matéria anunciada”) a tal
propaganda. Ao fetiche reforçado da mercadoria todos estão sujeitos: adultos,
idosos, jovens, homens, mulheres e crianças. Aos fundamentos e às consequências
do mercado e até de seu descontrole também!
E aqui um comentário sobre a “matéria
anunciada”, da qual se torna escravo, perdendo a identidade, como aparece no
poema. Matéria é o estofo, o conteúdo de que que uma mercadoria é feita.
Curiosamente, a mercadoria é apresentada como matéria. Tem-se aqui uma
metonímia – figura de linguagem que troca, neste caso, o contido (o bem,
mercadoria) pelo conteúdo de que ele é composto. E não aparece à toa. A matéria
transformada pelo trabalho se torna mercadoria, que é anunciada por meio das
etiquetas. As mercadorias expostas à venda nos mercados, em sua imensa maioria,
são, na verdade, matérias anunciadas, matérias em sua essência – diferentemente
da essência humana, responsável pela identidade das pessoas enquanto seres
inigualáveis, em sua “invencível condição”.
Crises econômicas (e políticas)
trazem consigo, entre outros males, o desemprego. Ora, o desemprego, no sistema
capitalista, também faz parte da exploração: empurra para baixo salários,
obriga a realização de horas extras sem reclamação, oferece um exército de
mão-de-obra barata constante, reduz o desejo de greve e desarticula movimentos
de luta em prol dos(as) trabalhadores(as), possibilita que uma reforma
trabalhista injusta – que leva à perda de direitos e ao aumento da exploração
capitalista – seja engolida por goela abaixo pela imensa maioria daqueles(as)
trabalhadores(as) desempregados(as) e também pelos(as) que estão empregados(as)
sem reação e sem reclamação. Obriga a realização também de reformas
político-econômicas injustas, a perda de bens coletivos da maioria, mas
mantendo privilégios de quem dispõe de imensas riquezas nas mãos.
Guerras e violência entram,
igualmente, nesse contexto. Mais de quinhentas mil pessoas mortas em guerra na
Síria, milhares mortas na África, outros milhares pela violência no Brasil e em
países do mundo todo (milhões de pessoas, se somados os milhares). Invasões,
manutenção de exércitos (tropas) e outros meios de demonstração e sustentação
do poder são outros fatos. Pessoas que perderam a identidade, que se tornaram
coisas. Fetiche da mercadoria, fetiche do poder e da riqueza. Reificação
(coisificação) de seres humanos, similar àquela presente no texto de Carlos
Drummond de Andrade e que a reforça. Para que o consumo reificado de
mercadorias e bens ocorra, além da identidade, pessoas perdem a vida e o mundo
natural, com os seres humanos dentro dele, sofre com o aquecimento global e
outros desastres naturais e humanos.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE,
Carlos Drummond de. Eu, etiqueta. Apud: PENSADOR UOL. Disponível em: https://www.pensador.com/frase/MjAyODM0/ Acesso em 04
de junho de 2017.
ARANHA,
Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Propaganda e Ideologia.
IN: _________________________. FILOSOFANDO:
Introdução à Filosofia. São Paulo, Moderna, 1994.
ARANHA,
Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. FILOSOFANDO: Introdução à Filosofia. São Paulo, Moderna, 2012.
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