domingo, 3 de dezembro de 2023

TERCEIRO BIMESTRE - AULA 25 DE SOCIOLOGIA DOS SEGUNDOS ANOS: KARL MARX E A ALIENAÇÃO (Concluir) (Prof. José Antônio Brazão.)

  

SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA/SECRETARIA DE EDUCAÇÃO

COMANDO DE ENSINO POLICIAL MILITAR

 CEPMG - VASCO DOS REIS

Divisão de Ensino / Coordenação Pedagógica

TERCEIRO BIMESTRE

AULA 25 DE SOCIOLOGIA DOS SEGUNDOS ANOS:

KARL MARX E A ALIENAÇÃO (Concluir) (Prof. José Antônio Brazão.)

EU, ETIQUETA (Carlos Drummond de Andrade)

 

Em minha calça está grudado um nome

que não é meu de batismo ou de cartório,

um nome... estranho.

Meu blusão traz lembrete de bebida

que jamais pus na boca, nesta vida.

Em minha camiseta, a marca de cigarro

que não fumo, até hoje não fumei.

Minhas meias falam de produto

que nunca experimentei

mas são comunicados a meus pés.

Meu tênis é proclama colorido

de alguma coisa não provada

por este provador de longa idade.

Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,

minha gravata e cinto e escova e pente,

meu copo, minha xícara,

minha toalha de banho e sabonete,

meu isso, meu aquilo,

desde a cabeça ao bico dos sapatos,

são mensagens,

letras falantes,

gritos visuais,

ordens de uso, abuso, reincidência,

costume, hábito, premência,

indispensabilidade,

e fazem de mim homem-anúncio itinerante,

escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda.

É duro andar na moda, ainda que a moda

seja negar minha identidade,

trocá-la por mil, açambarcando

todas as marcas registradas,

todos os logotipos do mercado.

Com que inocência demito-me de ser

eu que antes era e me sabia

tão diverso de outros, tão mim mesmo,

ser pensante, sentinte e solidário

com outros seres diversos e conscientes

de sua humana, invencível condição.

Agora sou anúncio,

ora vulgar ora bizarro,

em língua nacional ou em qualquer língua

(qualquer, principalmente).

E nisto me comparo, tiro glória

de minha anulação.

Não sou - vê lá - anúncio contratado.

Eu é que mimosamente pago

para anunciar, para vender

em bares festas praias pérgulas piscinas,

e bem à vista exibo esta etiqueta

global no corpo que desiste

de ser veste e sandália de uma essência

tão viva, independente,

que moda ou suborno algum a compromete.

Onde terei jogado fora

meu gosto e capacidade de escolher,

minhas idiossincrasias tão pessoais,

tão minhas que no rosto se espelhavam

e cada gesto, cada olhar

cada vinco da roupa

sou gravado de forma universal,

saio da estamparia, não de casa,

da vitrine me tiram, recolocam,

objeto pulsante mas objeto

que se oferece como signo de outros

objetos estáticos, tarifados.

Por me ostentar assim, tão orgulhoso

de ser não eu, mas artigo industrial,

peço que meu nome retifiquem.

Já não me convém o título de homem.

Meu nome novo é coisa.

Eu sou a coisa, coisamente.

 

Carlos Drummond de Andrade ANDRADE, C. D. Obra poética, Volumes 4-6. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989.

O texto acima encontra-se em:

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Propaganda e Ideologia. IN: _________________________. FILOSOFANDO: Introdução à Filosofia. São Paulo, Moderna, 1994. P. 50. Também disponível na internet, podendo ser encontrado em: < https://www.faberj.edu.br/cfb-2015/downloads/biblioteca/filosofia/Filosofando.pdf > Acesso em 19/08/2023.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Eu, etiqueta. Apud: PENSADOR UOL. Disponível em: https://www.pensador.com/frase/MjAyODM0/ Acesso em 04 de junho de 2017.

O texto de Carlos Drummond de Andrade presta-se a um trabalho interdisciplinar muito bom entre Filosofia e Língua Portuguesa (dentro desta, a literatura brasileira contemporânea, no campo da poética). Nele encontram-se temáticas como: (1)Moda – Filosofia: Theodor Adorno e Max Horkheimer, com a Indústria Cultural. (2)Alienação – Filosofia: Ludwig Feuerbach e Karl Marx. (3)Identidade – o EU em diversos filósofos. (4)Ser sentinte, pensante e outros – Filosofia: o ser, ser humano, ser pensante (ex.: René Descartes). (5)Existência e vida – Filosofia: o Existencialismo. (6)Liberdade – Na Filosofia: vários filósofos e filósofas (ex.: Hannah Arendt). (7)(Várias outras temáticas e filósofos[as].) Escolher textos curtos bons das temáticas desses(as) filósofos(as) e pôr em discussão com o texto literário do escritor.

POEMA EU, ETIQUETA, DE CARLOS D. DE ANDRADE [comentário]: (Prof. José Antônio.)

O poema Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade, trata da transformação das pessoas em objetos, marcas, anúncios, de sua perda de identidade, transformando-se em coisas, abandonando o ser, sua essência.

O ser aparece no poema na forma de verbo conjugado no presente do indicativo, apontando para a realidade da coisificação (reificação) pessoal, e como substantivo (o nome ser), referindo-se ao gênero humano (ser humano, ser pessoa).

De tanto fazer uso de vestes e acessórios para o corpo contendo marcas de produtos do mercado e, por vontade própria (“eu é que mimosamente pago”), propagandeiam aquelas mercadorias, as pessoas acabam perdendo aquilo que as identifica(m). Em vez de mostrar o que são, mostram coisas, nomes de produtos, de mercadorias), acabando por identificar-se com elas, ainda que não as comprem ou usem. A moda impõe-se, a personalidade obedece, a moda entra, a personalidade sai, esvaindo-se, perdendo-se.

O poema expõe a antítese (oposição) entre o ser (ser humano, pessoa) e o não-ser, isto é, a perda da identidade humana, que acaba por tornar-se coisa, objeto de anúncio mercadológico. O mercado, com suas marcas (etiquetas), impõe-se sobre a pessoa, levando-a a identificar-se com as mercadorias, alienando-se de seu ser.

No século 19 (XIX), Karl Marx estudou as ideias de Ludwig Feuerbach (filósofo alemão também do mesmo século). Este, ao estudar as religiões, concluiu que os homens criam os deuses, prestando-lhes culto e criando doutrinas ao redor de suas crenças. Com o passar do tempo, os criadores (pessoas) se tornaram criaturas daqueles que, na verdade, haviam criado, isto é, tornaram-se criaturas dos deuses e deusas. Desta forma, os seres humanos alienaram-se.

Aliu(s), no latim, é outro. Alienação é a ação de tornar-se outro (aliu[s]), deixando de ser o que se é e perdendo, portanto, sua identidade humana, de criador, passando a identificar-se como criaturas dos deuses. Por meio dessa alienação surgiram, pois, os deuses e as deusas, cabendo às criaturas alienadas (pessoas) submeter-se àqueles e aos seus representantes religiosos, os sacerdotes.

Marx aplicou as ideias de Feuerbach na análise da mercadoria. Toda mercadoria é algo produzido por trabalhadores e trabalhadores, principalmente em fábricas (indústrias), muitas vezes com o auxílio de máquinas – de fato, na época de Marx, a Revolução Industrial já havia avançado muito e, com ela, também a exploração de tais produtores(as). Mercadoria é um produto que vai para o mercado, a fim de ser vendido, conferindo lucros aos donos da produção (comerciantes, industriais e outros), ou seja, aos capitalistas.

A exploração de cada trabalhador e trabalhadora, de todos(as) os(as) trabalhadores(as) ocorria (e ocorre) de diferentes modos, com destaque para a mais valia – um valor a mais produzido que é apropriado pelos capitalistas –, seja através do aumento das horas trabalhadas (horas extras) e não pagas, seja pelo incremento da produção, tornando-a mais rápida e em maior escala, com o auxílio de máquinas e da colocação dos(as) trabalhadores(as) em linha. Também salários baixos – os salários eram tão baixos, no século 19 (XIX), que mulheres e crianças tinham que postas para trabalhar a fim de dar condições de sobrevivência às famílias, e recebiam salários menores que os dos homens. Não havia previdência social. As condições de trabalho nas fábricas eram péssimas, até mesmo insalubres. Havia crianças e adultos que perdiam mãos e até braços, estraçalhados pelas máquinas em momentos de descuido. Pior: perdiam o emprego quando isso ocorria, sem qualquer direito. Muitas vezes, todos(as) trabalhavam mais de 12 horas por dia! Férias inexistiam. Relógios eram manipulados para que cada trabalhador(a), com sua mulher e seus filhos trabalhassem a mais.

E as mercadorias? Postas no mercado, passaram a ser vistas como objetos de necessidade e, muitas vezes, até de desejos. O trabalhador e a trabalhadora (operários, operárias e outros) deixaram de ver as mercadorias como produtos do trabalho explorado. As mercadorias, com o tempo, foram se tornando fetiches. A alienação estava em curso: a mercadoria fetichizada perdeu seu caráter de produto e se tornou um bem em si, inclusive como objeto de desejo, de culto, como os deuses de Feuerbach. Cada trabalhador(a) se tornou um outro ser diante da mercadoria exposta na vitrine e no mercado, não enxergando nela um produto, fruto da exploração que enriquece os capitalistas. Só para dar alguns exemplos atuais: as mercadorias aparecem na televisão, em outdoors, vitrines de shoppings e mercados, lojas, etc., desejáveis e até mesmo idolatráveis, fetiches! Aquele carro do ano, aquela roupa da moda, aquele tênis, aquela grife, etc., como bem apresenta também o poema de Carlos Drummond de Andrade.

Fetiche significa, originalmente, feitiço, encantamento. A mercadoria, que se tornou um objeto encantado pelo mercado, objeto de profundo desejo e de adoração. E o que é uma crise econômica? Uma crise dessa adoração, desse encantamento, momento em que, por causa da falta de compra e redução nas vendas (muitas vezes, pela falta de dinheiro pela maioria das pessoa), o mercado entra em colapso. Então, os capitalistas, com o mercado, fazem? Em sua adoração à riqueza e à ambição desenfreadas, sacrifica a vida de milhões e milhões de pessoas, desempregadas e, muitas, levadas de volta à miséria.

No século 19 (XIX), crises de superprodução eram comuns. Produzia-se além do poder de consumo das pessoas, então sobrava muito, perdas podiam ser grandes. E a solução? Reduzir a produção, diminuindo a quantidade de trabalhadores(as), levados(as) ao desemprego e sujeitos, mais ainda, a salários curtíssimos – algo similar ao que ocorre no mundo atual –, no intuito de manter as riquezas do capital. O capital transforma as pessoas em coisas, palavra que aparece tanto no poema de Drummond (século 20 [XX]) quanto, antes dele, em Karl Marx (século 19 [XIX]).

O ser humano alienado – tornado outro –, ou seja, alguém sem identidade, torna-se coisa. Marx usa o termo reificação, ação de tornar-se res (palavra do latim que significa coisa) – coisificação. Daí, como bem aparece no poema, o Eu tornar-se “coisa, coisamente”.

A alienação – perda de identidade de produtor(a) de mercadorias, perda de identidade das pessoas enquanto pessoas – reforça a exploração, escondendo a realidade dessa exploração. Uma crise econômica, como a atual, no Brasil e no mundo, por exemplo, aparece ideologicamente como crise da falta de venda de mercadorias, como fruto do desaquecimento do mercado, não como fruto da reificação, da coisificação de milhões e milhões de trabalhadores(as) e de suas famílias. Ao deus mercado, junto com a ambição desenfreada em busca do aumento das riquezas de empresas e bancos, sacrificam-se vidas, famílias inteiras. Criam-se aparências, como a de que a culpa é também da Previdência ou das leis trabalhistas ditas antigas ou ultrapassadas. Esconde-se que, por trás, existe, no fundo, a exploração e milhões de pessoas cujo trabalho sustenta o modo de produção capitalista. Mexer em direitos de trabalhadores(as) para aumentar as riquezas e o poder econômico e político de grandes empresários, empresas multinacionais, investidores nacionais e estrangeiros, latifundiários e outros, a quem as reformas diretamente vão beneficiar e que não sofrerão com as perdas sofridas por aqueles(as).

Além dos seres humanos (operários e outros trabalhadores), o próprio mundo natural continua a ser sacrificado pelo capital. Uma das razões dos impasses em conferências climáticas, das saídas de grandes poluidores mundiais de tratados internacionais, é a produção de mercadorias e bens, sejam estes de compra e venda diretas, em mercados comuns, sejam eles bens financeiros (ações e outros produtos presentes em bolsas de valores). Uma produção fundada na exploração, de muitas formas, como as já apresentadas: mais valia, salários baixíssimos, horas extras não pagas, perda de direitos trabalhistas (na previdência, nas leis, etc.), etc. A própria corrupção, nas negociações e até na política aliada aos interesses do capital, é um meio de exploração – pessoas e grupos ricos se enriquecem às custas também do roubo do que é coletivo. Dentre os resultados, igualmente se encontram milhares de mortes em hospitais e serviços públicos de saúde, pessoas morrendo de fome em continentes inteiros, como é o caso da África, das Américas e outros, e tantos desmandos.

As mercadorias fetichizadas, não vistas mais como produtos frutos do trabalho explorado mas como bens de consumo, tornam-se objetos de desejo e de adoração, reforçados pela propaganda constante, seja na televisão, seja no rádio, em outdoors e por outros meios de comunicação, seja, como mostra bem o poema de Drummond, através da própria roupa, ou melhor, do próprio corpo, que estampa marcas e ideias de consumo, realizando gratuita e escravizadamente (“escravo da matéria anunciada”) a tal propaganda. Ao fetiche reforçado da mercadoria todos estão sujeitos: adultos, idosos, jovens, homens, mulheres e crianças. Aos fundamentos e às consequências do mercado e até de seu descontrole também!

E aqui um comentário sobre a “matéria anunciada”, da qual se torna escravo, perdendo a identidade, como aparece no poema. Matéria é o estofo, o conteúdo de que que uma mercadoria é feita. Curiosamente, a mercadoria é apresentada como matéria. Tem-se aqui uma metonímia – figura de linguagem que troca, neste caso, o contido (o bem, mercadoria) pelo conteúdo de que ele é composto. E não aparece à toa. A matéria transformada pelo trabalho se torna mercadoria, que é anunciada por meio das etiquetas. As mercadorias expostas à venda nos mercados, em sua imensa maioria, são, na verdade, matérias anunciadas, matérias em sua essência – diferentemente da essência humana, responsável pela identidade das pessoas enquanto seres inigualáveis, em sua “invencível condição”.

Crises econômicas (e políticas) trazem consigo, entre outros males, o desemprego. Ora, o desemprego, no sistema capitalista, também faz parte da exploração: empurra para baixo salários, obriga a realização de horas extras sem reclamação, oferece um exército de mão-de-obra barata constante, reduz o desejo de greve e desarticula movimentos de luta em prol dos(as) trabalhadores(as), possibilita que uma reforma trabalhista injusta – que leva à perda de direitos e ao aumento da exploração capitalista – seja engolida por goela abaixo pela imensa maioria daqueles(as) trabalhadores(as) desempregados(as) e também pelos(as) que estão empregados(as) sem reação e sem reclamação. Obriga a realização também de reformas político-econômicas injustas, a perda de bens coletivos da maioria, mas mantendo privilégios de quem dispõe de imensas riquezas nas mãos.

Guerras e violência entram, igualmente, nesse contexto. Mais de quinhentas mil pessoas mortas em guerra na Síria, milhares mortas na África, outros milhares pela violência no Brasil e em países do mundo todo (milhões de pessoas, se somados os milhares). Invasões, manutenção de exércitos (tropas) e outros meios de demonstração e sustentação do poder são outros fatos. Pessoas que perderam a identidade, que se tornaram coisas. Fetiche da mercadoria, fetiche do poder e da riqueza. Reificação (coisificação) de seres humanos, similar àquela presente no texto de Carlos Drummond de Andrade e que a reforça. Para que o consumo reificado de mercadorias e bens ocorra, além da identidade, pessoas perdem a vida e o mundo natural, com os seres humanos dentro dele, sofre com o aquecimento global e outros desastres naturais e humanos.

REFERÊNCIAS:

ANDRADE, Carlos Drummond de. Eu, etiqueta. Apud: PENSADOR UOL. Disponível em: https://www.pensador.com/frase/MjAyODM0/  Acesso em 04 de junho de 2017.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Propaganda e Ideologia. IN: _________________________. FILOSOFANDO: Introdução à Filosofia. São Paulo, Moderna, 1994.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. FILOSOFANDO: Introdução à Filosofia. São Paulo, Moderna, 2012.

 

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