sexta-feira, 5 de maio de 2017

O TURBILHÃO DE DEMÓCRITO (Prof. José Antônio Brazão.)

Ver um artigo anterior, por mim escrito, sobre Leucipo, Demócrito e Epicuro, neste site.
O fragmento doxográfico 1, referente a Demócrito, citado por Gerd Bornheim, na sequência em que fala dos átomos como princípio(s) de tudo, diz, em um pequeno trecho: “(...) Os átomos são ilimitados em grandeza e número e são arrastados com o todo em um turbilhão. (...) Tudo se faz por necessidade; sendo o turbilhão causa da gênese de tudo, ele o chama necessidade.(...)” (Frag. Doxogr. 1 de Demócrito, apud BORNHEIM, 1996, p. 124). Tudo é formado por átomos, minúsculas partículas (partezinhas) de matéria que se encaixam de modos diversos, em diferentes combinações, formando todos os seres. No início de tudo, os átomos encontravam-se em um turbilhão.
Turbilhão é um redemoinho, como os redemoinhos formados pelo ar, alguns dos quais pequenos e outros gigantes, a ponto de destruir casas e devastar cidades. Turbilhões ou redemoinhos também se formam na água. Mas por que um turbilhão na origem de tudo?
Vamos refletir um pouco.
Um redemoinho comum, daqueles que levantam a poeira em dias secos, carrega consigo a matérias mais leves, como poeira, folhas, partículas dos mais diversos tipos. Um redemoinho (turbilhão) gigante (tornado, por exemplo), como os capazes de destruir casas, carregam materiais os mais diversos também, como poeira, madeira, telhados e muitas outras coisas, dependendo do tamanho, até gente! O turbilhão de Demócrito, que deu origem ao cosmos (universo), carregava consigo os átomos que a este viriam formar, com seus seres dos mais diferentes tipos. A medir pelo tamanho do universo, um turbilhão imenso!
Todo turbilhão é composto de matéria – um turbilhão de ar, comum, é composto por este, um turbilhão de água, por esta. A matéria primordial era composta de átomos. A atual também. Nos primórdios, um turbilhão de átomos!
Todo turbilhão está em movimento. Ora, o movimento é uma marca das ideias de Heráclito, um dos filósofos pré-socráticos, como Demócrito. Os átomos, por sua vez, são eternos, além de serem ilimitados. A eternidade era um atributo do ser de Parmênides. Demócrito soube aliar bem o pensamento do devir e da permanência.
E “na origem de todas as coisas estão os átomos e o vazio” (mesmo fragmento, no início). Imagine um copo vazio, no qual estejam leite em pó, um pouco de canela em pó, um pouco de chocolate e água. Deixe tudo ali quieto. Que efeito produz esse material? Se você beber, sentirá o gosto da água pura (certamente morna), bem como outros gostos dos materiais que com ela estão no copo. Mas movimente o copo bem ou mexa com uma colher, até que tudo se misture e forme um composto homogêneo. Eis que surge uma combinação muito gostosa. Então, tem-se o vazio do copo, no qual estão postos os materiais, mas algo mais foi necessário: um movimento de sacudidela ou do movimento da colher, um pequeno turbilhão!
É claro, o movimento que deu origem ao cosmos não surgiu dos deuses e deusas, como o de alguém que sacudiu e girou o copo ou mexeu a colher em movimentos circulares - de pequeno turbilhão - para formar aquela mistura deliciosa. O movimento é inerente ao universo, ao cosmos, como acreditava Heráclito. Um movimento, no caso de Demócrito, que teve a capacidade de misturar os átomos e provocar combinações diversas, a partir de seus encaixes  - os átomos de Demócrito se encaixavam, como uma peça de Lego se encaixa em outra, algo parecido.
Mas também o movimento diminui, ainda que continue existindo. Um redemoinho de ar para, mas o ar continua em movimento! E os átomos têm a capacidade de combinar-se e recombinar-se, em tudo havendo o movimento (o devir heracliteano). Se não reduzisse, não haveria o cosmos (a harmonia, a ordem), universo. Parar? Não. O movimento (o devir) é permanente: o vazio é constantemente ocupado, desocupado e reocupado – ele ainda existe e continuará existindo, junto com os átomos. As pessoas, formadas por átomos, se movimentam; o ar, formado de átomos, se movimenta; os planetas e as estrelas, no sistema geocêntrico do tempo de Demócrito, continuam e continuarão girando, tudo formado por átomos!
O turbilhão inicial foi-se aquietando, ainda que o movimento não se perca, possibilitando o agregar dos átomos, formando seres, numa grande pluralidade. Curiosamente, os planetas e as estrelas giram em torno da Terra (no centro do universo-cosmos geocêntrico). Um turbilhão (redemoinho) de ar ou de água tem um ponto central a partir do qual gira. Imaginemos que no turbilhão originário do cosmos um número imenso (o texto fala ilimitado) de átomos foram, pouco a pouco, compondo planetas, estrelas, a Terra e os seres que nela existem, toda a pluralidade. Ora, até o próprio ser humano, para Demócrito, é um microcosmos, portanto composto por átomos que estavam no turbilhão original.
Mas o que é a necessidade de que o texto fala? O fragmento 6 responde: “Por necessidade entende Demócrito o choque, o movimento e o impulso da matéria. (Aet. I, 26, 2).” Ideias que combinam bem com o turbilhão (o redemoinho)! A matéria, formada por átomos, carrega consigo o impulso, isto é, está em contínuo e necessário, incessante, movimento. Chocando-se uns com os outros, no movimento, átomos se juntam, formam seres, planetas, a Lua, a Terra, plantas, bichos, gente, tudo, enfim.
E, por falar em eternidade, o fragmento 16 diz: “Demócrito tinha a opinião de que os átomos se movem eternamente em um espaço vazio. Há inumeráveis mundos, que se distinguem pelo seu tamanho. (Hippol. I, 13, 2).” (Idem, p. 126). Então o universo (o cosmos) de Demócrito não é fechado, restrito à Terra no centro, com a Lua, os planetas e as estrelas girando em torno dela! Há inumeráveis mundos! Ideia que combina bem com a afirmação de que os átomos são ilimitados em grandeza e número. Num universo fechado, puramente geocêntrico – o geocentrismo foi contestado por Aristarco, na antiguidade, mas só começou a ser derrubado nos séculos 16 (XVI), com Copérnico, e 17 (XVII), com Galileu Galilei, seguidor de Copérnico –, não haveria possibilidade de quantidade ilimitada de átomos! Um universo fechado, obrigatoriamente, teria limite, impondo um limite à quantidade de átomos. E num universo maior, com inumeráveis mundos, o vazio se faz necessário para haver espaços entre os “inumeráveis mundos”.
Certamente, Demócrito não deve ter deixado de crer no geocentrismo, mas, sem dúvida, ampliou imensamente a perspectiva que tinha do universo, do cosmos. E o turbilhão, com esses inumeráveis mundos? Uma possibilidade de entendimento pode ser encontrada num redemoinho de vento, fraco ou forte – ele espalha muita poeira, no caso do pequeno, ou muitas coisas, no caso do grande. Os inumeráveis mundos, compostos de átomos (ilimitados em grandeza e número), só podem ter sido espalhados pelo turbilhão original de tudo e, como a Terra e os planetas, formando unidades ordenadas! (Se mantivesse o geocentrismo tradicional, tudo girando ao redor da Terra. Talvez.)
Curiosamente, as palavras cosmos e mundo, respectivamente de origem grega e latina, indicam o que é ordenado, organizado. (O contrário de cosmos é caos; de mundo, é imundo [i-mundo].) Inumeráveis mundos – organizados, compostos por átomos e vazio e em contínuo movimento.
Além de adequar-se à perspectiva heracliteana do movimento, do devir, e da eternidade dos átomos, aproximando-se da eternidade do ser de Parmênides (ainda que haja diferenças), o turbilhão de Demócrito aparece como uma opção filosófica diante da perspectiva mitológica grega do Caos original, tendo, ademais, em vista que os gregos antigos não criam que o cosmos surgiu do nada.
REFERÊNCIA DO LIVRO DE BORNHEIM:

BORNHEIM, Gerd A. (Org.) Os Filósofos Pré-Socráticos. 14.ed. São Paulo, Cultrix, 1996.