COMANDO DE
ENSINO POLICIAL MILITAR
CEPMG -
VASCO DOS REIS
Divisão de
Ensino / Coordenação Pedagógica
PRIMEIRO
BIMESTRE
AULA 3 DE TÓPICOS DE
CIÊNCIAS HUMANAS DO PRIMEIRO ANO:
OS ÍNDIOS NO BRASIL E O
CONTATO COM OS PORTUGUESES:
OBS.: Este material será
utilizado igualmente em outras aulas, dada a quantidade de informações nele
contidas e na discussões que daqui podem brotar. Dividir-se-á em partes, no
intuito de facilitar o trabalho. Citações e resumos ajudarão.
CONTEXTO: AS GRANDES
NAVEGAÇÕES (Prof. José Antônio Brazão.)
Para podermos
contextualizar (situar) a história de Goiás, no período colonial, é preciso que
recuemos no tempo, até, pelo menos, os séculos XV e XVI. Esses séculos foram um
tempo de grande desenvolvimento do comércio, da cultura e das grandes
navegações na Europa.
Vale lembrar de alguns
acontecimentos ocorridos na Europa, que se acrescentam ao contexto (situação
histórica, no tempo e no espaço) histórico. Além das Grandes Navegações: o
incremento do comércio na Europa e com a Ásia, por meio do Mar Mediterrâneo e
das rotas caravaneiras, que antecede e segue, impulsionando, com o tempo, as
Grandes Navegações; o Renascimento Cultural, também antecendente e subsequente,
nos séculos XV, XVI; a Revolução Científica Moderna (inícios); a Reforma
Protestante (século XVI). Esses acontecimentos viriam a ter impacto,
posteriormente, na história do Brasil e na história de GOIÁS. Veremos, cada
elemento destes, noutro momento.
A descoberta do Brasil
NÃO se deu por acaso. Cristóvão Colombo, no final do século XV (1492,
exatamente), já havia descoberto terras, que se saberia, com certeza, depois,
ser um novo continente e não as Índias (na Ásia). Colombo estava a serviço da
Coroa Espanhola. Espanha e Portugal, nestes tempos, buscavam novas rotas
(caminhos) marítimos para chegar às Índias (Índia e outras regiões próximas, na
Ásia), em busca de especiarias (condimentos) e outros produtos de largo
comércio na Europa, nessa época.
Um tratado entre Espanha
e Portugal, viria a ser firmado, dividindo o mundo em dois, segundo as
possessões (posses, domínios) de ambos reinos. De acordo com o Brasil Escola:
"O Tratado de Tordesilhas foi um acordo feito
entre os reinos de Portugal e Espanha, em 7 de junho de 1494, que definiu os
limites das áreas de exploração entre ambos na América do Sul. A divisão se
daria a partir de um meridiano estabelecido a 370 léguas de Cabo Verde. Nessa
partição, as terras descobertas a oeste da linha imaginária pertenceriam aos
espanhóis e as terras descobertas a leste pertenceriam aos portugueses. "
(BRASIL ESCOLA. "Tratado de Tordesilhas"
em: <https://brasilescola.uol.com.br/historiab/tratado-de-tordesilhas.htm > Acesso em 28 de janeiro de 2023.)
Os portugueses, grandes
navegadores, logo desconfiariam que poderiam haver mais terras a oeste do
Oceano Atlântico, como as descobertas pela Espanha, através de Colombo. Então,
enviaram, em1500, o navegador Pedro Álvares Cabral, com uma esquadra de navios,
em direção ao Sul da região que havia sido descoberta por Colombo. Depois de um
bom número de dias de viagem pelo oceano, Cabral e seus navegantes chegaram a
novas terras. Inclusive, encontraram habitantes nessas terras, mencionados na
Carta de Pero Vaz de Caminha, encarregado dos registros escritos, ao Rei Dom
Manuel.
Essa carta é um documento
importante para vermos a descrição dos índios brasileiros na visão dos
portugueses (europeus), bem como entendermos parte das razões pelas quais,
ainda que com a demora de algumas poucas décadas, Portugal viria a partir para
a colonização das terras descobertas, a divisão da terra em CAPITANIAS
hereditárias e a vinda dos chamados BANDEIRANTES ao Brasil, entre os quais dois
se destacariam na chegada a GOIÁS, buscando, em Goiás, terras, índios para escravizar
e, especialmente, ouro, daí a formação de vilarejos e até mesmo pequenas
cidades, no período colonial, que serão objetos de estudo no decorrer do ano.
Aqui, neste primeiro
momento, foco será posto no início da colonização do Brasil, no contato entre
portugueses e indígenas.
No que diz respeito à
religião, é importante lembrar que a religião oficial, em Portugal, nestes
tempos (séculos XV, XVI, XVII e até depois) era o catolicismo, com
representantes da Igreja Católica Romana. Os marinheiros que vieram com Pedro
Álvares Cabral, inclusive, participaram de missas, ao longo da viagem, uma das
quais, a primeira no Brasil, é mencionada na Carta de Pero Vaz de Caminha, o
escrivão português.
Estado e Igreja, em
Portugal e em seus domínios, com destaque para o Brasil e para GOIÁS, andariam
juntos por muito tempo. Pero Vaz de Caminha, inclusive, fala de possível
conversão dos habitantes que Cabral havia encontrado nas novas terras
descobertas. A carta de Caminha é muito rica em detalhes, os quais viriam a
servir de base, com certeza, para ações posteriores de Portugal em relação ao
Brasil, levando em conta a qualidade da terra e de possibilidades de riquezas
que aí poderiam vir a ser encontradas.
Os portugueses estavam
interessados, até mesmo, em ouro e pedras preciosas. Uma terra boa para
plantios igualmente poderia ser e, de fato, veio a ser extremamente útil ao
enriquecimento português, como se verá, depois, ao tocar no ciclo da cana de
açúcar e outros ciclos (do café, em séculos posteriores, por exemplo). Neste
primeiro momento, é importante assinalar o contato entre povos diferentes,
entre portugueses e índios, bem como no fato de, de uma relação amistosa, vir a
surgir uma relação de conflitos e de escravização indígena.
O lugar principal onde
aportaram Pedro Álvares Cabral e sua esquadra, e que hoje é local turístico,
foi chamado do Porto Seguro. A carta traz informações interessantes sobre os
índios e sobre a terra nova encontrada. Vejamos o texto da carta de Caminha.
TEXTO DA CARTA DE PERO
VAZ DE CAMINHA (ANO DE 1500):
Obs.: O texto está
escrito em português do século XVI.
Carta de Pero Vaz de Caminha: A El-Rei D. Manuel
sobre o achamento do Brasil
Senhor,
posto que o
Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa
Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se agora nesta
navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza,
assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba
pior que todos fazer!
Todavia tome Vossa
Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para
aformosentar nem afear, aqui não há de pôr mais do que aquilo que vi e me
pareceu.
Da marinhagem e das
singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza — porque o não
saberei fazer — e os pilotos devem ter este cuidado.
E portanto, Senhor,
do que hei de falar começo:
E digo quê:
A partida de Belém
foi — como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de março. E sábado, 14 do dito
mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grande
Canária. E ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a
quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas mais ou menos, houvemos
vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de São Nicolau, segundo o dito
de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte à
segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem
haver tempo forte ou contrário para poder ser !
Fez o capitão suas
diligências para o achar, em umas e outras partes. Mas... não apareceu mais !
E assim seguimos
nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de
Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da
dita Ilha — segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas — os quais
eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e
assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte,
pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a
horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande
monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de
terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte
Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
Mandou lançar o
prumo. Acharam vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas da terra,
lançamos ancoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Ali ficamo-nos toda
aquela noite. E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura
à terra, indo os navios pequenos diante — por dezessete, dezesseis, quinze,
catorze, doze, nove braças — até meia légua da terra, onde todos lançamos
ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez
horas, pouco mais ou menos.
E dali avistamos
homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios
pequenos que chegaram primeiro.
Então lançamos fora
os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do
Capitão-mor. E ali falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para
ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia
homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do
rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem
coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas
setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez
sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver
fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente
arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na
cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas
de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de
papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que
querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa
Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais
fala, por causa do mar.
À noite seguinte
ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente a
Capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho
dos pilotos, mandou o Capitão levantar ancoras e fazer vela. E fomos de longo
da costa, com os batéis e esquifes amarrados na popa, em direção norte, para
ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nós ficássemos, para tomar
água e lenha. Não por nos já minguar, mas por nos prevenirmos aqui. E quando
fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou
setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e mandou o
Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem
pouso seguro para as naus, que amainassem.
E velejando nós
pela costa, na distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro,
acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e
muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as
naus foram-se chegando, atrás deles. E um pouco antes de sol-posto amainaram
também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a onze braças.
E estando Afonso
Lopez, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do
Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meter-se logo no esquife a
sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa
almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas.
E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou. Logo,
já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito prazer e
festa.
A feição deles é
serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos.
Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de
encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande
inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso
verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de
algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do
beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de
roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes
põe estorvo no falar, nem no comer e beber.
Os cabelos deles
são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente,
de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por
baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie de cabeleira,
de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui
cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos,
pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal que a cabeleira
era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para
a levantar.
O Capitão, quando
eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e
bem vestido, com um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e
Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na
nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E
eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram, nem de falar ao Capitão; nem
a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos
com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos
que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo
acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse
prata!
Mostraram-lhes um
papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram
para a terra, como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um
carneiro; não fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma
galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe
pegaram, mas como espantados.
Deram-lhes ali de
comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não
quiseram comer daquilo quase nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam
fora.
Trouxeram-lhes
vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram
mais.
Trouxeram-lhes água
em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas
lavaram as bocas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas
contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas,
e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e
acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do Capitão, como
se dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós
nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as
contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que lho não
havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então
estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de
encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas
estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou
pôr por baixo da cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por
não a estragar. E deitaram um manto por cima deles; e consentindo,
aconchegaram-se e adormeceram.
Sábado pela manhã
mandou o Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e
tinha seis a sete braças de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram
em cinco ou seis braças — ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro,
e tão seguro que podem ficar nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que
as naus foram distribuídas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do
Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias
fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os deixassem ir com seu arco
e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma carapuça vermelha
e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços, e um
cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo
degredado, criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com
eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau
Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo perto de
duzentos homens, todos nus, com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levamos
acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os arcos. E eles os depuseram. Mas
não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos quando saíram os que
nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem
esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E passaram um
rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E
muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do rio entre umas
moitas de palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o
degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá.
Mas logo o tornaram a nós. E com ele vieram os outros que nós leváramos, os
quais vinham já nus e sem carapuças.
E então se
começaram de chegar muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até
que mais não podiam. E traziam cabaças d'água, e tomavam alguns barris que nós
levávamos e enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo
chegassem a bordo do batel. Mas junto a ele, lançavam-nos da mão. E nós
tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.
Levava Nicolau
Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha,
de maneira que com aquela encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos
daqueles arcos e setas em troca de sombreiros e carapuças de linho, e de
qualquer coisa que a gente lhes queria dar.
Dali se partiram os
outros, dois mancebos, que não os vimos mais.
Dos que ali
andavam, muitos — quase a maior parte —traziam aqueles bicos de osso nos
beiços.
E alguns, que
andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos
de pau, que pareciam espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles
bicos, a saber um no meio, e os dois nos cabos.
E andavam lá outros,
quartejados de cores, a saber metade deles da sua própria cor, e metade de
tintura preta, um tanto azulada; e outros quartejados d'escaques.
Ali andavam entre
eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos
pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das
cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam.
Ali por então não
houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha que
se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem. E assim o
fizeram e passaram-se para além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos
dos batéis, e encheram não sei quantos barris d'água que nós levávamos. E
tornamo-nos às naus. E quando assim vínhamos, acenaram-nos que voltássemos.
Voltamos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles, o
qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar
ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma, antes
mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe
desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da
primeira agasalhara. E então veio-se, e nós levamo-lo.
Esse que o
agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas
pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de
penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas
moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem
feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa
terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela.
Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós.
E com isto nos
tornamos, e eles foram-se.
À tarde saiu o
Capitão-mor em seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis
a folgar pela baía, perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o Capitão o
não querer, apesar de ninguém estar nela. Apenas saiu — ele com todos nós — em
um ilhéu grande que está na baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com
tudo está de todas as partes cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir,
a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele, e todos nós, bem uma hora e meia.
E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um chinchorro; e mataram peixe
miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem noite.
Ao domingo de
Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele
ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com
ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro
levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer
missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com
aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual
missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali estava com o
Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem
alta, da parte do Evangelho.
Acabada a missa,
desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa
areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no
fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob
cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção.
Enquanto assistimos à
missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos,
como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos,
sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a
pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a
saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias — duas ou três
que lá tinham — as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três
traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam,
não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.
Acabada a pregação
encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira
alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção à terra para passarmos ao longo
por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias
em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o
entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro de pedra.
Como viram o
esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até
onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam
logo pôr em terra; e outros não os punham.
Andava lá um que
falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse
que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu
arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos
quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram
de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem
desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu um homem do
esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com ele,
e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água;
e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu
Dias ao Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem
os mais constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então
ficaram.
Neste ilhéu, onde
fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito
cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam.
Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito
grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas
de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois
de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do
Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos
se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo
navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que
nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.
E entre muitas
falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que
seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada,
perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os
mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes
degredados.
E concordaram em
que não era necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim
à força levavam para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam;
e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens desses
degredados que aqui deixássemos do que eles dariam se os levassem por ser gente
que ninguém entende. Nem eles cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem
dizer que muito melhor estoutros o não digam quando cá Vossa Alteza mandar.
E que portanto não
cuidássemos de aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para
os de todo amansar e apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados
quando daqui partíssemos.
E assim ficou
determinado por parecer melhor a todos.
Acabado isto, disse
o Capitão que fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o
rio. Mas também para folgarmos.
Fomos todos nos
batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à
boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que
dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que
os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual
não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos
nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e
outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam
misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças
de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos
e andaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e
iam alguns para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem
ao colo dois homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali
estava não seria mais que aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou
todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o reconhecerem por Senhor,
mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam
muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer
coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e
setas e contas.
E então tornou-se o
Capitão para aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis
galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como
pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro
ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava
uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela
tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos
com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão
nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha
nenhuma.
Também andava lá
outra mulher, nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de
modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto,
não havia pano algum.
Em seguida o
Capitão foi subindo ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por
um velho que trazia na mão uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava
com ele, na presença de todos nós; mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por
mais coisas que a gente lhe perguntava com respeito a ouro, porque desejávamos
saber se o havia na terra.
Trazia este velho o
beiço tão furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia
metido no buraco uma pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele
buraco. E o Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela
para a boca do Capitão para lha meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo
chalaças sobre isso. E então enfadou-se o Capitão, e deixou-o. E um dos nossos
deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela valer alguma coisa, mas para
amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com as outras coisas a
Vossa Alteza.
Andamos por aí
vendo o ribeiro, o qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas
palmeiras, não muito altas; e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos
deles.
Depois tornou-se o
Capitão para baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado.
E além do rio
andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem
pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então para a outra banda do rio Diogo
Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o qual é homem gracioso e de prazer. E
levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com eles,
tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com ele muito bem ao
som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando no
chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E
conquanto com aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como
de animais monteses, e foram-se para cima.
E então passou o
rio o Capitão com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao passo que os
batéis iam rentes à terra. E chegamos a uma grande lagoa de água doce que está
perto da praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a
água por muitos lugares.
E depois de
passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que
se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E
levavam-lho; e lançou-o na praia.
Bastará que até
aqui, como quer que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão para
outra se esquivavam, como pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de
rijo para não se esquivarem mais. E tudo se passa como eles querem — para os
bem amansarmos !
Ao velho com quem o
Capitão havia falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a conversa que
com ele houve, e com a carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a
passar o rio, foi-se logo recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém.
Os outros dois o Capitão teve nas naus, aos quais deu o que já ficou dito,
nunca mais aqui apareceram — fatos de que deduzo que é gente bestial e de pouco
saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo isso andam bem curados, e
muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias
montesinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas,
porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode
ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se
recolham; e o ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até
agora nenhumas casas, nem coisa que se pareça com elas.
Mandou o Capitão
aquele degredado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e
andou lá um bom pedaço, mas a tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o
quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nada do
seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles umas continhas amarelas que
levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após ele, e
lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira
lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito
grandes, como as de Entre-Douro-e-Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase
noite, a dormir.
Segunda-feira,
depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos;
mas não tantos como as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E
estiveram um pouco afastados de nós; mas depois pouco a pouco misturaram-se
conosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns deles se esquivavam logo. Ali
davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha e por
qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte ou trinta
pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com
moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves,
uns verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma
amostra a Vossa Alteza.
E segundo diziam
esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e
mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam
quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como
em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e
bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que na cor
queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E estavam
cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se
desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se
molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados
até por cima das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as
testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da
largura de dois dedos.
E o Capitão mandou
aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meter-se
entre eles; e assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com que eles
folgavam. E aos degredados ordenou que ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos;
e andaram entre eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma
povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão
compridas, cada uma, como esta nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas
de tábuas, e cobertas de palha, de razoável altura; e todas de um só espaço,
sem repartição alguma, tinham de dentro muitos esteios; e de esteio a esteio
uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em que dormiam. E de baixo,
para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas,
uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se recolhiam
trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de
comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na
terra dá, que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar;
e não quiseram que lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com
eles. Resgataram lá por cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que
levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes
pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores,
espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá,
porque o Capitão vô-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e
nós tornamo-nos às naus.
Terça-feira, depois
de comer, fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia,
quando chegamos, uns sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que
chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. E depois acudiram muitos, que
seriam bem duzentos, todos sem arcos. E misturaram-se todos tanto conosco que
uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos batéis. E lutavam com os
nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha, construíam dois
carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara. Muitos
deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para
verem a ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque
eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras
feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por
tal maneira que andam fortes, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles
conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.
E o Capitão mandou
a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum
viessem a dormir às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.
Enquanto andávamos
nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes
uns, e pardos, outros, grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá
muitos nesta terra. Todavia os que vi não seriam mais que nove ou dez, quando
muito. Outras aves não vimos então, a não ser algumas pombas-seixeiras, e
pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal. Vários diziam que viram
rolas, mas eu não as vi. Todavia segundo os arvoredos são mui muitos e grandes,
e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!
E cerca da noite
nós volvemos para as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor,
que não dei ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os
arcos são pretos e compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas
aparadas, conforme Vossa Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de
enviar.
Quarta-feira não
fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a
despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à
praia, muitos, segundo das naus vimos. Seriam perto de trezentos, segundo
Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos
quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá dormissem, tinham voltado
já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam papagaios verdes;
e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico branco
e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele,
alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de
prol. Mandou pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que
lhes deram, e mandou dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e
folgaram aquela noite. E não houve mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira,
derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais
lenha e água. E em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar
com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas, e
veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes, sentaram-no cada um em sua cadeira. E de
tudo quanto lhes deram, comeram mui bem, especialmente lacão cozido frio, e
arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.
Acabado o comer,
metemo-nos todos no batel, e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma
armadura grande de porco montês, bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no
beiço; e porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera
vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de sorte que
segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com
ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo
com ela. E não tornou a aparecer lá.
Andariam na praia,
quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me
que viriam este dia a praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Alguns
deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca de carapuças e por qualquer
coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos, e alguns deles bebiam
vinho, ao passo que outros o não podiam beber. Mas quer-me parecer que, se os
acostumarem, o hão de beber de boa vontade! Andavam todos tão bem dispostos e
tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam. Acarretavam dessa
lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E estavam
já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.
Foi o Capitão com
alguns de nós um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita
água, que ao nosso parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomamos
água. Ali descansamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse
arvoredo que é tanto e tamanho e tão basto e de tanta qualidade de folhagem que
não se pode calcular. Há lá muitas palmeiras, de que colhemos muitos e bons
palmitos.
Ao sairmos do
batel, disse o Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava
encostada a uma árvore, junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã,
sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles
verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. E a esses dez ou doze que
lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram todos beijá-la.
Parece-me gente de
tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo
cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências.
E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e
os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se
farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que
os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E
imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que
Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele
nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois
tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E
prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!
Eles não lavram nem
criam. Nem há aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro
animal que esteja acostumado ao viver do homem. E não comem senão deste inhame,
de que aqui há muito, e dessas sementes e frutos que a terra e as árvores de si
deitam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós
tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Nesse dia, enquanto
ali andavam, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril
nosso, como se fossem mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente
acenava, se queriam vir às naus, aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que
se os convidáramos a todos, todos vieram. Porém não levamos esta noite às naus
senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um que
já trazia por pajem; e Aires Gomes a outro, pajem também. Os que o Capitão
trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam trazido a primeira vez
quando aqui chegamos — o qual veio hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele
um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida como de
cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje que é
sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra com nossa
bandeira; e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul onde nos pareceu que
seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser vista. E ali marcou o Capitão o
sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E enquanto a iam abrindo, ele
com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela estava. E com os religiosos
e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de
procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos
assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passamos o
rio, ao longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de
dois tiros de besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinqüenta,
ou mais. Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro
lhe haviam pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei
Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram
conosco, a ela, perto de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de
joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em
pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco, e alçaram as mãos,
estando assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E
quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim
como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que
certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção.
Estiveram assim
conosco até acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses
religiosos e sacerdotes; e o Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles,
por o Sol ser grande, levantaram-se enquanto estávamos comungando, e outros
estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, se
conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim estávamos, juntava aqueles
que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles,
falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para
o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos!
Acabada a missa,
tirou o padre a vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao
altar, em uma cadeira; e ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o
dia, tratando no fim da pregação desse vosso prosseguimento tão santo e
virtuoso, que nos causou mais devoção.
Esses que estiveram
sempre à pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo,
chamava alguns, que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a
pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que
lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um
sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o padre frei Henrique ao pé da cruz;
e ali lançava a sua a todos — um a um — ao pescoço, atada em um fio,
fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e
lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. E isto acabado —
era já bem uma hora depois do meio dia — viemos às naus a comer, onde o Capitão
trouxe consigo aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para
o céu, (e um seu irmão com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa
mourisca; e ao outro uma camisa destoutras.
E segundo o que a
mim e a todos pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda
cristã, do que entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer
como nós mesmos; por onde pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração
têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar
ande, que todos serão tornados e convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por
isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar; porque já
então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos dois degredados que aqui
entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.
Entre todos estes
que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à
missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela.
Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de o estender muito para se cobrir. Assim,
Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior — com
respeito ao pudor.
Ora veja Vossa
Alteza quem em tal inocência vive se convertera, ou não, se lhe ensinarem o que
pertence à sua salvação.
Acabado isto, fomos
perante eles beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.
Creio, Senhor, que,
com estes dois degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta
noite se saíram em terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram
mais. E cremos que ficarão aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa
partida daqui.
Esta terra, Senhor,
parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que
contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que
haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em
algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra
de cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda
praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar,
muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão terra e arvoredos
— terra que nos parecia muito extensa.
Até agora não
pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem
lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como
os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como
os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem!
Contudo, o melhor
fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve
ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse
mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute
bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa
Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé!
E desta maneira dou
aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco
alonguei, Ela me perdoe. Porque o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez
pôr assim pelo miúdo.
E pois que, Senhor,
é certo que tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de
Vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço
que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de
Osório, meu genro — o que d'Ela receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de
Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro,
da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de
Caminha.
REFERÊNCIAS:
BRASIL ESCOLA. "Tratado de Tordesilhas". Disponível
em: <https://brasilescola.uol.com.br/historiab/tratado-de-tordesilhas.htm >
Acesso em 28 de janeiro de 2023.
CAMINHA, Pero Vaz de. A Carta de Pero Vaz de Caminha.
Disponível em: < http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/Livros_eletronicos/carta.pdf >
Acesso em 28 de janeiro de 2023.
CAMINHA,
Pero Vaz de. Carta de Pero Vaz de Caminha: A El-Rei D. Manuel sobre o
achamento do Brasil.
Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action=&co_obra=17424&co_midia=2 >
Acesso em 28 de janeiro de 2023.
CAMINHA, Pero Vaz de. LITERATURA BRASILEIRA. Textos literários em meio eletrônico.
A Carta, de Pero Vaz de Caminha .
Disponível em: < https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=117060 > Acesso em 28 de janeiro de 2023.
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